sexta-feira, 10 de julho de 2015

O caqui não quica

Três caquis estavam num prato de alumínio sobre a mesa. Eram idosos, enrugados, muito encostados uns nos outros, o que parecia indicar ausência de mais deles. No espaço vago pequenos círculos possuíam formação pastosa, alaranjada, e uma esquadra de mosquitos pairava sobre o prato, incitados pelo aroma tanto dos caquis presentes quanto pelo líquido que ficou dos ausentes. Eram como urubus diante de uma carniça.

Mas os caquis não eram cadáveres... Ou eram?

Era fácil arrancar-lhes a frágil pele deixando-os em carne viva. Depois os partiriam revelando as veias que derramariam sucos, e os músculos que arrebentariam os nervos até serem devorados por ansiosos predadores. Se caíssem da mesa eles nunca quicariam, mas explodiriam no chão deixando seus órgãos esmagados à mostra dos ventos e da putrefação.

Vê-los assim, nesse estado decadente, gerou-me recordações da juventude e meu irmão surgiu nos pensamentos. Há muitos anos ele era um rapazinho que se lambuzava comendo caquis. Sujava suas camisetas com o caldo do fruto e ao sair à rua parecia ter passado numa poça de água cheia de barro. Até certa vez quando alguém gritou “olha o açougueiro!” De fato,  o garoto parecia ter saído de um matadouro com sua camisa cinzenta e sua bermuda colorida toda manchada de um vermelho intenso. O jovem "fruticida" que fantasiava ser médico acabou uma década depois se tornando prisioneiro de outros desejos numa cela de concreto.

Visitei-o ocasionalmente ao longo dos anos. Muitas vezes o vi sentado, cabisbaixo e encostado em si mesmo num canto de sua cela, fincando o rosto nos joelhos. Sem vidros, sem espelhos, sem um prato de alumínio para ver seu reflexo, mesmo que distorcido. O lugar era opaco e lúgubre lembrando mais um calabouço medieval do que uma prisão comum. Parado naquela posição eu pensava que ele escondia sua vergonha, mas nada havia de vergonhoso me respondia.

Em uma passagem mais demorada, meu irmão qualificou os caquis como apetitosos desde o princípio. Inspirava-o quando os via criando forma enquanto infante fruto, crescendo vibrantemente e pulsando energia, brilhando em meio à natureza, amadurecendo bem para serem apreciados no momento certo. Ele amava caquis demais e sempre falava das frutas.

Certo dia, os médicos conversaram comigo. Segundo suas observações, a fruta era citada, porém não fazia parte da imaginação. Um membro familiar agia de acordo com um princípio culinário de intensa vontade, com intuito de assimilar o objeto a fazer parte de seu corpo e de sua alma como num ritual antropofágico. Quando meu irmão dizia como tirava a pele do caqui usando sua boa habilidade manual e arrancava nacos da carne com os dentes saboreando-a a cada segundo, percebi que não era uma literalidade, do ato de comer uma fruta. Isso embrulhou meu estômago, pois deixou de ser uma fantasia alucinante.

Nunca mais ousei comer caquis. Agora só como laranjas.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Currupito paraguaio

- Do que você ta falando?

- Hã?

- Currupeio paraguaio.

- Currupito!

- Que diabos é isso?

- Uma aventura sobre quatro rodas.

- HA HA. Cuma?

- Ouvi no rádio certa vez. Aliás ouvi currupeio também.

- Mas o que é?

- Um cavalo de pau.

- Oi?

- Pô, mas você não sabe nada mesmo. Não sabe o que é um cavalo de pau?

- Desculpe, não lembro.

- Ai ai. Fica nas bikes e esquece dos carros, seu natureba. Cavalo de pau é o giro que se dá no carro usando o volante de mão. Quem tem habilidade faz isso também com freio de mão.

- Ah tá. Verdade.

- Viu?

- Não explica o currupito.

- Não explica mesmo. Esse termo surgiu numa rádio. Acho que foi na Bandeirantes. O locutor falava isso toda vez que um piloto de Fórmula 1 fazia esse giro com o carro. O currupeio veio depois, acho que erro de um comentarista.

- Que gíria tosca.

- Divertida.

- Você ainda assiste as corridas.

- Não mais. Já faz alguns anos.

- Aquilo era chato. Ainda existe.

- Existe. Mas estou tão preocupado com outras coisas mais importantes que desisti de acompanhar. Gostava, mas acabou não se tornando imprescindível.

- A última vez que ouvi falar colocaram uma mulher pra correr.

- Fiquei sabendo...

- Currupito paraguaio... Por que especificamente paraguaio?

- Acho que pra demonstrar amadorismo. Ou um giro imperfeito, como muitos produtos que saem do Para--

- Que foi?

- Tomei um susto com o comissário fechando os bagageiros.

- Fraco você.

- Sim, pobre de mim. Falta de costume. Minha terceira vez num avião. Esqueço os procedimentos.

- Acabou de dar um currupito paraguaio, seu amador.

domingo, 24 de maio de 2015

Monte Carlo

"Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa e suicida-se."
Anton Tcheckov

Um homem foi a Monte Carlo. Vestiu sua melhor roupa e se permitiu arrumar da melhor forma possível. Sentiu que nada tinha a perder, pois tudo já fora perdido. O ato de ir a Monte Carlo moldou parte de seu futuro e a viagem fora longa, mas a entrada no cassino definiu sua existência por completo.

Com poucas notas caminhou por um saguão espaçoso e decorado com pinturas de séculos passados. Entrou como se infiltrasse pela porta dos fundos. Trocou o dinheiro por parcas fichas. Cada uma delas jogada era uma ferida ainda não cicatrizada sendo aberta em seu corpo. O homem sangrava em meio às demais pessoas e seus olhos atiçados por conquistas alheias. Cartas voadoras o defrontavam, a roleta girava e as fichas subiam andares sobre as mesas. Um cético vivendo entre ilusionistas e iludidos. Saiu pela mesma entrada carregando o peso dos problemas do mundo.

Deixou para trás a classe sedutora de Mônaco de navio. Viajou entristecido de volta à sua terra natal. Foi a um banco depositar a fortuna numa conta antes de chegar ir pra casa. O gerente do banco apertou-lhe a mão sorridente como se fosse um antigo amigo. O homem partiu daquele lugar pobre. Não havia mais nada em sua carteira a não ser parcas moedas. Usou-as. Primeiro foi a uma loja de doces e escolheu um sonho, o mais pulsante em recheio. Sonhou. Seus olhos cintilantes estavam fixos e perdidos, sua mente saboreava em comunhão ao seu paladar cada pedacinho de massa e creme, seu coração batia suavemente ritmado como se sua própria alma o bombeasse. Nunca havia saboreado um doce daquela forma.

Então, os ritmos cardiológicos se intensificaram quando o homem viu seus inimigos, os cobradores que o puxaram para o caminho sem futuro. Eram aqueles a quem devia uma fortuna e foi para a ganância deles que ganhou o dinheiro do cassino. Uma sensação claustrofóbica o deixou sem ar. Encostou-se no poste para não cair no chão. Isso o deixou triste, pois se lembrou de atitudes que perduraram por muito tempo e que nunca teve coragem de resolvê-las. A culpa fora exclusivamente dele ao acabar com o sonho que um dia teve.

Andou cabisbaixo pela rua. Passou por um mercadinho e usou o resto das moedas. Ao chegar à casa ajeitou as compras sobre a mesa. Depois retirou uma faca da cozinha, sentou na poltrona, uma muito velha e rasgada, e cortou os pulsos. Da maneira certa, como uma linha paralela às veias do braço. Pensou no sonho da tarde e nos sonhos de outrora, mas o que mais imaginou foi o futuro que não veria.

Os cobradores chegando ao local, arrombando a porta, vendo-o morto com os dois braços esticados sobre a poltrona, a cabeça erguida de forma imóvel e imperativa. Sobre a mesa pegariam um saco de papel e veriam um bilhete preso com durex. Um deles retiraria do saco uma grande espiga de milho, crua, cheia de fios e então leria o bilhete para o comparsa: “Este é todo milhão que vocês conseguirão de mim.”

sábado, 23 de maio de 2015

Um pedestre

Noite de chuva. Está diminuindo. Meu pulso pulsa mais fraco conforme o coração diminui o ritmo. Apenas mendigos me olham cambalear sobre a faixa de pedestres, a mesma faixa que atravessei quase todos os dias durante sete anos da minha miserável vida.

Quem é mais miserável afinal? Eu que caio falsamente em poças no asfalto disforme? Os mendigos que sob a proteção das marquises me veem dar um currupito paraguaio no ar sob as incessantes gotas de chuva? Os cães que esqueceram os mendigos e nem sabem que existo, pois dormem deliciosamente numa caixa de papelão?

Estatelei -me. Envergonhei-me. Meti-me numa maré de azar. Os deuses não me perdoaram, mas não me advertiram também. Destruam-se mutuamente seus calhordas!

Grito: “Aaaaaaaaahhhnnnnnn... Que agonia...”

Olho para todos os lados encabulado e ensopado. Não preciso chorar; a chuva faz isso por mim. Iluminado apenas pelas lâmpadas da rua, ergo-me com dor; no pé, no joelho, nas costas, na mão, na cabeça porque gritei, no coração porque ele parou.

Sinto-me leve agora que estou ereto. Caminho deslizando até a calçada. Os pingos suaves me atingem com uma ternura ácida que não me tateava anteriormente. Os mendigos estão atônitos, mas os cães não despertaram. Continuam em sonhos de filés. Invejo-os.

Agora, minhas andanças prevalecerão na ladeira que vem a seguir?

Parou de chover.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Pedido certo por palavras tortas

Cliente chega à loja e pergunta:

- Você tem o Sibilarion?

Mas essa não é a pior. Há situações mais constrangedoras como abaixo:

A moça entra na loja e pergunta pra primeira vendedora que vê.

- Você tem o Robert?

- Robert?

- É! O Robert?

- A senhora está procurando uma pessoa, o título de um livro ou é o nome do autor?

- O livro se chama O Robert!

- Desculpe moça. Não conheço qualquer livro com esse título.

- Como não? É famoso. Tem até filme. Tá passando no cinema.

A vendedora pensa por alguns segundos e olha para as mesas e se depara com uma capa.

- Você está procurando esse livro aqui? Ele não se chama Robert, mas Hobbit!

- É esse mesmo!

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Na hora errada ele veio

Tô com sono, muito sono, mas que saco de sono, quero sonhar...

Não dormi bem a noite e agora veio esse sono, absurdo sono com seus absurdos sonhos.

Na hora errada, quando preciso ficar alerta. E não tem como sonhar sem um sono adequado, sem uma cama adequada.

Mas o sono... É tão forte! Ele acaba comigo. Transforma o sonho em desejo e deixa a mente dopada. O sonho não mata, mas pode frear outros sonhos, daqueles despertos que nos fazem andar. O sono é uma delicia quando nos entregamos a ele. Seria triste se ele virasse insônia.

Agora a insônia me pegou! Sem café, nem nada. Foi uma fagulha de pensamento que fez acordar.

Mas eu queria dormir e levitar em outro lugar...

Dar a caras às fábulas e devaneios, tirar aquele cochilo esperto que faz a gente se levantar com vontade e consciente das ações que iremos tomar.

Quero dormir... Mas não aqui!

Mas quero dormir...
quero sim...
dormir...

dor...

...

terça-feira, 19 de maio de 2015

Derivado do macarrão

A moça quase nunca chegava tarde à sua casa. Desta vez não pode evitar. O calor e o trânsito deixaram-na mais cansada do que suas tarefas diárias. Atrasada, pegou o filho na escola que estava bastante chateado de tanto esperar. Não ofereceu o beijo habitual na bochecha da mãe e chegou a expressar birra ao receber um beijo dela, talvez por estar molhado de suor. Mas não esperneou e logo se acalmou.

Em casa, a moça não teve tempo para descanso. Não havia janta do dia anterior pra esquentar, não tinha comida congelada pronta pra micro-ondas e perdeu a chance de comprar algo na padaria. Ela estava com fome, muita fome. Mas pensou no filho... E no marido que estava por vir! Ele até cozinhava, mais do que ela, mas neste dia atípico também chegaria tarde. Seria algo profundamente lamentável se o pobre coitado se deparasse com dois vazios, do estômago e da falta de comida feita.
Impondo-se a tarefa árdua do momento, a moça nem trocou de roupa. Foi pra cozinha, pôs um avental que esvoaçou em protuberante cena, lavou as mãos, pegou os potes de arroz e de feijão, depois a carne moída crua do freezer, a cenoura e a mandioquinha da geladeira. Pôs tudo pra cozinhar com fascinante agilidade.

Então o menino reclamou de fome. Mas a janta demoraria pra estar no ponto. A mãe buscou alternativa enfiando seus olhos de coruja em cada canto da cozinha. Voltou ao armário e encontrou um pacote. Era colorido, levemente retangular, cheio de sódio e sal, calórico, sem gosto de massa, viciante. Um pacote de Miojo. Ela olhou aquele aperitivo e pensou se era digno oferecer ao menino alimento sem os nutrientes adequados. “Que seja!”, pensou sozinha. Fechou o armário e disse na mais calma e terna voz: “Já já tá pronto querido.”

Em ralos minutos o Miojo ficou pronto. A mãe serviu ao menino um pratão cheio de massa em formato de cérebro com tempero industrial sabor tomate. Não é a melhor refeição que existe, ela sabia, mas quebra um galho em tempos de guerra e tempos perdidos da vida cotidiana.

O menino torceu o nariz de maneira muito sutil. A mãe não viu. “Pode comer”, disse ela. O filho pegou o garfo de sobremesa, enrolou os fios de massa e abocanhou o alimento. Agraciada, a mãe lhe fez um carinho no pescoço. Agora era hora de esperar e terminar a janta de verdade.

Mais tarde, o marido chegou bastante cansado. Cumprimentou o filho que desenhava numa folha sobre a mesa. Beijou a esposa.

“Um que cheiro bom”, respirou fundo. “O filhote comeu?”

“Comeu sim. Comeu macarrão”, respondeu a mãe.

O menino que estava quieto disparou em salutar vontade de corrigir o erro materno. Deixou o pai estupefato e a mãe profundamente irritada porque, no fundo de seu coração, sentia-se apunhalada. O que o menino teria dito?

“Macarrão não, mamãe. Miojo!”

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Quero original!

A mãe entra na loja com a filha. Encontra o vendedor e pergunta:

- Minha precisa de um livro pra escola. Você pode me ajudar?

- Posso sim. Qual o título?

- Filha, qual é o livro?

A menina lê as inscrições num papelzinho.

- A Ilha do Tesouro.

- Ah do Stevenson né?

- Não! – grita a menina. A mãe se assusta com a afirmação imperativa.

- Desculpe, como não? – o vendedor olha o papel – Então, claro que é, está escrito aqui Robert Louis Stevenson. É a versão da Scipione.

- Sim.

A mãe olha seriamente para a filha enquanto o vendedor faz a busca no terminal de consulta.

- Então, eu não tenho disponível pra pronta entrega, apenas por encomenda. Há quatro versões cadastradas, mas duas estão esgotadas.

A menina olha o monitor e declara:

- Não são essas capas. Eu quero o original!

- Se você quiser o original terá que comprar o livro em inglês – responde o vendedor sarcasticamente contra a prepotência mirim.

- Filha, o moço diz que só tem essas versões. Como não é nenhuma delas? – questiona a mãe com um olhar desafiador para ambos.

- A professora disse que tem que ser da editora Scipione.

- Mas os livros que pesquisei são dessa editora.

- Mas as capas não são essas.

O vendedor passa a conversar diretamente com a mãe.

- Então, há duas versões do livro. A coleção é a mesma. A encomenda pode ser feita e demora até cinco dias úteis para chegar. Interessa?

- O livro é para agora? – a mãe vira para a filha.

- Não.

- Então fale com sua professora pra ver se é isso mesmo. Depois voltamos e encomendamos. – a mãe vira para o vendedor. – Obrigada!

- De nada!

domingo, 17 de maio de 2015

Deteriorados

“Meu nome é Re, o dele é Bok.”

“Oi”, diz Bok.

“Somos irmãos. Estamos juntos desde que soubemos do propósito de nossa existência. Nos conhecemos em meio à máquinas feitoras que de tão barulhentas faziam vibrar nossos couros e linhas. Fomos postos num ambiente escuro há muito tempo. Até que um período a luz veio e nunca mais a vimos ir embora.”

“Eu me lembro disso, Re. Era tal de escuro, claro, escuro, claro, quase sempre. Fora que voávamos para todos os lados sem um motivo aparente. Mas continue...”

“Pois, então: agora não somos mais tão novos ou exuberantes. Eu estou manco, piso duro, machuco nosso detentor. E Bok tem furos, faltam-lhe os pontos necessários da parte frontal. Entra muitas coisas dentro dele que arrebentam a área confortável e macia. Uma lástima. Também estamos sujos e cansados e talvez seja hora da aposentadoria.”

“Ei, Bok. O detentor chegou. E nessa hora ele joga um pó branco. Não é tão ruim, tem bom aroma e nos dá um aspecto respeitável.”

“Pois é, ele joga em nós dois, mas quando põe seu membro em mim eu passo a tossir o pó branco. Acho que não faz tão bem à minha saúde. Bem... Lá vamos nós.”

“Uma pisada de cada vez.”

“Toda vez que pisamos, o detentor abre e fecha estruturas. Parece uma dança enquanto damos rasantes pelo chão. Agora ele abre a estrutura principal e... Ah não Bok, vamos ficar encharcados!”

“Pelos cadarços! Vai ter de ser!”

“Bok está bem?”

“Não consigo respirar!”

“Eu também não, mas aguente firme.”

“Estou ficando p--- pesado... Re!”

“Eu... blurg... t—também.”

“B---b---ndo---to---quido.!”

“Bok...? Bok...? Bok!”

...

“Estamos voltando Bok... Oh! Pelo cadarço que nos prende! Bok se foi! Bok foi levado pela força dos líquidos em declínio no chão. Estou no ambiente seco novamente. Sou retirado do membro do detentor eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee...”

PÁ!

“Fui atirado longe! Agora estou deitado no chão com líquidos saindo de mim, avolumando-se à minha volta. Sem meu irmão, parceiro de existência, não sei qual será o meu destino.”

sábado, 16 de maio de 2015

Livre Iniciativa

Com um carrinho de pamonha Crispim fez meia vida. Veio do brejo, mal sabia ler e escrever nos primórdios da vida batalhadora, mas soube fazer as contas quando viu que deveria sobreviver. Como não tinha habilidades com a oratória, fez de tudo o que fora possível com a ação: fora açougueiro, pedreiro, pintor, encanador, traficante e feirante. Contudo, o milho se tornou sua âncora quando começou a vida de feirante e os derivados deste espécime vegetal moldaram sua modesta vida profissional.

Crispim vendia pamonhas no mesmo ponto há uns dez anos. Ficava numa avenida importantíssima da cidade, onde se localizam prédios executivos, e de frente para uma praça – que mais parecia um parque cheio de árvores de tão grande que era. O ponto era perfeito. E nele Crispim tinha uma clientela fixa que saboreava a comida mesmo negligenciando o método pouco higiênico do trabalho dele. O vendedor fumava e mexia com dinheiro antes e depois de mexer com a comida. Alguns questionaram a falta de açúcar ou mesmo de sal em suas iguarias. O vendedor nem ligava, pois sabia que a maioria dos pedestres era composta por clientes passageiros. Talvez nunca mais o vissem outra vez. O importante era vender as pamonhas.

Esse rito de passagem das pessoas dava uma sensação de liberdade a Crispim. Estacionado no ponto ele vislumbrava ser patrão de si mesmo, ou como seus colegas diziam, a livre iniciativa. Mal sabia o que isso queria dizer, no entanto, persistiu na vida fazendo as coisas, tomando atitudes. Condenava bolsas e cotas. “Preguiçosos e covardes”, bradava batendo no peito. “Eu persisti e consegui. Sozinho!” Pois é, assim como seus concorrentes: de um lado era o churrasqueiro; depois vinha o cara do amendoim; do outro lado, fixou-se a moça dos dogs, e atrás dela o pipoqueiro. Acompanhado dessas figuras como se fosse um clube fechado, Crispim sentia-se respeitado.

Certo dia, no sentido contrário da avenida, pararam um homem e uma criança na calçada. Eles manejavam um carrinho de milho e pamonhas. Pareciam demarcar território e este lugar era de frente para um grande edifício. Já no primeiro dia conseguiram vender quase tudo da mercadoria até o fim do dia. Crispim os observou atentamente e quando lhe indagaram sobre as intenções do vendedor de pamonhas de outro lado da rua, ele simplesmente respondeu: “Não vai durar.”

Algumas semanas se passaram e, Crispim sentia as vendas declinarem. Os poucos reais que não entravam apertavam o seu orçamento. O homem via seu rival do outro lado vendendo pamonhas febrilmente, mas não entendia esse sucesso afinal ninguém reclamava de queda nas vendas, nem seus colegas da praça. Não se deu por vencido e usou o método do capitalismo selvagem para eliminar a concorrência: denunciou o rival para a vigilância sanitária anonimamente.

Agentes da vigilância foram ao local no dia seguinte e, para não ser surpreendido, Crispim nem levou seu carrinho. Foi ao ponto como observador. Ele viu os agentes analisarem cada um dos ambulantes, os dos seus colegas e o do concorrente do outro lado da avenida.

“Cadê seu carrinho, Crispim?”, perguntou o pipoqueiro.

“Num deu pra trazê. Tá com a roda quebrada. Vou comprá outra no centro”, respondeu o pamonheiro. Mais interessado na queda do seu algoz, ele viu à distância os agentes conversando com o homem. Este apontou para o menino que contava o dinheiro arrecadado com as vendas de pamonha. E no fim nada aconteceu.

Crispim ficou desolado. Resolveu denunciá-lo novamente; desta vez, para a prefeitura por falso registro de trabalho. Como ele tinha tal registro foi trabalhar normalmente nos dias posteriores. Demorou quase uma semana para um agente municipal aparecer e, quando foi tratar da legalidade de trabalho do concorrente, nada aconteceu. E, muito puto da vida, Crispim ainda viu o agente comprar uma pamonha do homem. Não desistiu e proferiu nova denúncia: tráfico de drogas.

Ora, Crispim sabia como funcionava o tráfico em geral. Anos atrás havia sido preso com meio quilo de drogas variadas. Pegou seis meses de prisão e saiu da cadeia de cabeça erguida já que lá dentro conseguia traficar qualquer coisa. Porém, manteve-se longe desse tipo de coisa e se fixou na venda dos quitutes relacionados ao milho. Pelo menos era legal. Mas não era legal o que seu concorrente estava fazendo roubando sua clientela.

No auge da tarde do dia seguinte, Crispim observou dois policiais rondarem o carrinho do rival. O trânsito de carros e de pedestres não facilitava a visão dos acontecimentos, mas pode assistir aos policiais conversando com o homem. O tom era sério e o rival parecia espantado. Crispim se surpreendeu com a abordagem sem abusos, sem confronto. Logo sorrisos entre eles despontaram. Aqueles oficiais que deveriam retirar o homem dali ainda ganharam copinhos de curau e deixando o local rindo. Essas risadas geraram angústia a Crispim. Ele olhou em torno de si e viu pessoas demais sorrindo e se divertindo. Ele suava porque todos riam, riam de Crispim, o verdadeiro rei da pamonha daquela rua que estava por ser destronado. Virou chacota, voltara a ser um ninguém, um homem que decaía de emprego, um patrão subjugado.

Ao cair da noite, Crispim estava um caco. Entristecido e desestimulado desmontava seu carrinho. Vendeu pouco, muito pouco... Então, percebeu dois colegas cochichando. Investiu sorrateiramente a fim de se inteirar no burburinho e viu-os devorando uma pamonha cada. Crispim quis saber a origem daqueles quitutes, pois não os tinha vendido para parceiros. Mas ele sabia a resposta e queira ouvi-la, queria saber o porquê. “A pamonha dele é mais docinha.”

Enraivecido, cego, Crispim pegou o facão cortador de milho. Atravessou a rua apressadamente para acabar com a concorrência de uma vez por todas. O homem desmontava seu carrinho em meio à escuridão, pois a lâmpada do poste queimara. Crispim usou o escuro a seu favor. O rival e seu herdeiro tombaram como porcos abatidos. E as pamonhas deixaram de ser vendidas naquela avenida.